quarta-feira, 18 de junho de 2014

Ar sob a água




Perguntas: Quando for-me, farei falta?
Digo: quisera faltar-me a visão
Ou lanças transpassar-me o coração
E emudecesse assim minh’alma incauta.

Se me faltasse tua presença lauta,
Me abandonaria, nesse instante, o chão,
Faltaria-me também ar ao pulmão,
Iria-se a musa que mi'a lira exalta.

Sem ti, o mundo perderia a cor;
Reinariam trevas sobre as claridades;
O pesar sobrepujaria o amor;

Gritos pérfidos calariam verdades
Sussurradas sem o mínimo ardor...
Iriam sorrisos, ficariam saudades.


Apneia



Ah, esse canto suado que de ti brota;
Esse beijo apneico, seco, mortal;
Esse rosnar delicioso, animal.
Ah, esse cheiro de sal, essa grota.

A garra voraz que a pele amarrota
Me agarra, me faz refém desse mal;
Me afunda, me inunda; num nó sensual
Geme, me espreme, me exaure, me esgota

Se afasta e olha com um riso indecente.
Com esse olhar soberbo o brio maltrata.
O hálito alvo, orvalhado... quente.

Exige assim rendição imediata.
Em luto, luto uma luta dolente
Com um ente imponente que, ao fim, me mata.



Lua rútila




Desde quando te vi, minha pequena,
Naquela primeira vez – tão risonha,
Perdi-me qual um'alma quando sonha
Co'o tempo parado na mesma cena.

Prostrei-me lá a te observar – dava pena
Da minha feição de coita, tristonha,
Boquiaberto, com postura bisonha.
Tu, altiva sereia, de si plena.

Tivera sid’a lua rútila... cheia,
Há tanto tempo desaparecida,
Que pusera a ti ali tão alheia.

Tu, criatura “sui generis”, “sui” Cida
- Estrela que o meu caminho clareia,
Sorri e traz à minha vida vida.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

El Capitán



Oh, quão torpe noite fria... congelante;
Como o barco, o coração atracado.
Nas galés, um peito tosco abrasado,
Lá fora, Posseidon brada pedante.

Na vante, El Capitán, qual debutante,
Andeja... sôfrego, de lado a lado;
Anseia o mar em frente com o enfado
Que refreia seu ímpeto viajante.

Rememora tristemente a sua terra.
Seu rosto, hoje forjado pela guerra,
Umedece do pranto mais tristonho.

Deixa atônitos a todos que o miram,
Mas o herói que tanto todos admiram
Sabe a dor de deixar p’ra trás um sonho.


quarta-feira, 26 de março de 2014

Via-crúcis


Por que caminho esta estrada sinuosa
Cheia de outros andarilhos perdidos?
Eu e muitos, aos trancos, conduzidos –
Débil – por esta multidão odiosa.

Deus!... Por que ando esta via pedregosa
De desilusão... De sonhos sofridos?
Em carne viva, os pés já doloridos.
Gemo sem saber de dor ou quem goza.

Irrompo em avalanche aos tropeções...
Em terror tento conter a descida.
Num estrondo estrido qual trovões

Me arrasta bruta a horda enlouquecida...
Caio... logo sou erguido aos puxões...
De joelhos, sigo a via-crúcis que é a vida.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A flor



Ontem, ao passar por um descampado
Avistei uma flor tremendo e fria.
Não derramasse nela a luz do dia,
Seu coração seria já gelado,

Perguntei o que a tinha incomodado
Tanto que no descampado a fazia
Chorar o orvalho em mais pura agonia
Como nunca havia flor então chorado.

E me disse, ao morrer, em aflição:
“Como vive... uma flor... em seco... chão?”...
Correndo a abracei com seus espinhos...

Machucado, agarrei seu corpo langue
E molhei com lágrimas e com sangue
Aqueles secos, sofridos pezinhos.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Los dioses: La lluvia

 
Eu, a chuva fria, pequenina e fina,
Caio dançando do céu gris, nublado;
Me espalha, tua mão fina e pequenina,
Ri com meu canto doce no telhado.

Minha mera presença já amofina
Esse dia ensolarado, enfadado;
Trago à tona a infância da menina
Ébria pelo cheiro de chão molhado.

Faço tudo e te cobro muito pouco.
Varro a rua, que tu passas, como louco!
Soberba, deslizas indiferente...

Aviltada não vês tanto que faço.
Dando as costas, me negas quente abraço,
Só porque molho os campos doutra gente.



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Los dioses: El Viento



Eu, que já viajo pelos quatro cantos
Do mundo, vejo o vai-e-vem de vidas
Desde muitas eras então devidas
E polinizo as almas com meus cantos.

Eu que faço em cada face acalanto,
Roçando gentilmente as tuas feridas;
Eu, que assim mesmo: à revelia, já vi das
Tempestades torpes o hediondo canto.

Eu, que sempre trago o orvalho e a brisa,
Y que he puesto em su cara una sonrisa,
Nunca esmolei uma graça da tua boca.

Não anseio por altar, ou respeito,
Ou uma turba em seu louvor rarefeito.
É sério! Não exijo nada em troca...


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Ufania



Primordiais, no mundo há cinco elementos:
O fogo, a água, o ar, o tempo e a terra.
Sonhar lográ-los a cada momento
Impele sempre a humanidade à guerra.

Da obliteração que a sua força encerra,
Dos bens que causam no homem tanto alento,
Das vidas que a água queima e o fogo enterra,
No ar noturno, à terra fria, o gozo lento.

O tempo, em seu poder irrepreensível,
Mostra ao primata – qual deus mais temível -
O animal soberbo que a terra aterra.

O fogo se extingue, a água evapora,
Nos falta o ar e a vida a si devora,
O tempo acaba... só nos sobra a terra.

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